24 janeiro 2008

A biomecânica genial

Daqui a quinze/vinte anos, quando o cigano rebelde do Dragão pendurar as botas e recordarmos o jogador que foi, ninguém vai dizer «Eu, naquele dia, assobiei o Quaresma!”. Pelo contrário, vão todos dizer, orgulhosos: “Eu, naquele dia, vi jogar o Quaresma!”

Quando recebe a bola em campo, cada jogador tem uma intenção do que fazer com ela a seguir. Coisas simples, um passe curto e já está, ou coisas diabólicas, fintas, remate impossível e o jogo virado do avesso. Quaresma pertence à segunda casta. Ainda bem. Na equipa, coexistem outros jogadores do primeiro tipo. Ainda bem, também. Uns equilibram os outros. São o garante do ecossistema de uma equipa de futebol. É nos segundos, porém, que mora um dos princípios da genialidade. Fazer algo de grande e de diferente ao mesmo tempo. Aos primeiros, o escudo protector desta ousadia. Gosto muito de falar do lado táctico do jogo, depositada no cofre-forte tacticista da primeira espécie, mas não custa crer que são os segundos que nos fazem levantar extasiados dos nossos lugares.

Quaresma já o fez muitas vezes. E em todas essas vezes podia ter resolvido os lances de forma mais simples. Mas não. Ousou fazer algo grande, mágico, e pintou obras de arte, golos ou centros assombrosos. E foi aplaudido e loucura. Noutras, não engatou o primeiro drible, e perdeu a bola quando tinha um companheiro ao lado bem colocado para receber o passe. E foi assobiado logo a seguir.

É comum no futebol ouvir-se falar no gesto técnico perfeito. É um mito. Porque cada um tem a sua forma de viver ou jogar. Na vida, escrever com a caneta mais ou menos deitada, comer com garfo à direita e a faca à esquerda. No jogo, Correr com os pés para fora, centrar com a parte de fora da direita quando devia ser com a de dentro com a esquerda. Em qualquer destes momentos, há a materialização de uma intenção. Há, no futebol, a técnica ao serviço da táctica. A intenção, primeiro. A acção, depois. O que interessa, depois, é que a segunda corresponda à primeira. A eficácia. É isso que faz a qualidade do passe ou do remate. Não a forma como ele é feito. Quaresma é um bom exemplo desta questão. A biomecânica da técnica expressa na trivela. É comum defini-la como contra-natura ou quase insolente. Centrar com a parte de fora da direita quando devia ser com a de dentro com a esquerda. Complicar o fácil. Na bancada, os adeptos quando vêem os jogadores a tentar a trivela, ficam, primeiro, espantados, e, depois, se sai bem, é genial, se sai mal, assobiam e gritam: “não inventes!”. Já vi também muitos técnicos de formação dizerem o mesmo a miúdos que a tentam fazer. Não faz sentido. Porque cada um constrói a sua biomecânica. Por isso, Quaresma não inventa quando cruza ou remata dessa forma. Ela é, apenas, a forma técnica de tornar mais eficaz a sua intenção táctica. É a sua particular biomecânica. Contrariá-la ou assobia-la é atentar contra a riqueza e a beleza e o do jogo.

Poderão dizer que exagera nesta forma de jogar e quando perde a bola, pode desequilibrar tacticamente a equipa. É aqui que entra a tal noção do ecossistema futebolístico, do equilíbrio ecológico que deve ser uma da equipa. Se Quaresma decide jogos nesses seus rasgos, o treinador tem de o aproveitar. Ao mesmo tempo, tem de adaptar a equipa a isso, para o caso de quando ele falhar, perder a bola, ter médios ou laterais atentos para, nas suas costas, activar a transição defensiva. É a tal táctica, com «T» grande. A colectiva.

Quaresma irritou-se com os assobios. Em campo, pelo tom desafiador com que festejou o golo logo a seguir. Fora dele, ao dizer que vai continuar igual. Quanto mais me assobiarem, mais eu vou pegar na bola e resolver jogos. Bela frase. Independentemente de ser um génio ou de um jogador normal, mesmo daqueles que falham os simples passes, não consigo entender o acto de assobiar um jogador durante um jogo de futebol. Dirão que é uma reacção emocional e que há direito a protestar, etc. Sem dúvida. Afinal, também Miguel Ângelo só pintou uma capela Sistina. Devia ter pintado uma todos os dias. Não faz sentido. Daqui a quinze/vinte anos, quando o cigano rebelde do Dragão pendurar as botas e recordarmos o jogador que foi, ninguém vai dizer «eu naquele dia assobiei o Quaresma!”. Pelo contrário, vão todos dizer, orgulhosos: “Eu, naquele dia, vi jogar o Quaresma!”

Luís Freitas Lobo in Planeta do Futebol

Nota: Quero pedir desculpas ao leitores do blog pela insistência no assunto do Quaresma vs Assobios, mas não podia de deixar de aqui colocar este texto verdadeiramente divinal do grande poeta do futebol que é o Luís Freitas Lobo.

13 comentários:

  1. Os meus parabéns pela escolha deste belo texto da pessoa que mais sabe de3 futebol em Portugal.
    Chega a ser deprimente comparar a qualidade,isenção e conhecimentos futebolísticos de Luis Freitas Lobo com os restantes comentadores da nossa praça que tentam dar ares de imparcialidade mas á mínima oportunidade se denunciam...
    Descreveu na perfeição e de forma brilhante o que eu também penso em relação ao Quaresma,nunca tería era a capacidade de escrita e raciocínio de LFL que é para mim uma referência na análise do futebol.
    Abraço

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  2. Nem mais. O ciganito é um génio e já deixou bem vincada a sua marca nestes últimos 3 anos no nosso clube. Este é dos que vai deixar saudades e que irá ser recordado como um dos grandes artistas que vestiram a nossa camisola ao nível de um Madjer, Futre, etc...

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  3. È claro que este assunto vai rapidamente ser esquecido e espero eu já a partir do proximo domingo quando o Quaresma for oautor do golo da nossa vitória :)

    Mas é bem verdade essa frase: "ninguém vai dizer «Eu, naquele dia, assobiei o Quaresma!”. Pelo contrário, vão todos dizer, orgulhosos: “Eu, naquele dia, vi jogar o Quaresma!”

    Porque para sempre nos vamos lembrar das fintas, das assistencias, das trivelas e daqueles golos magnificos que nos encheram de alegria.

    Abraço!

    http://estrelas-do-fcp.blogspot.com/

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  4. Para que falar mais, está td dito neste texto divinal!!

    na última 3a assisti, cm sempre, ao trio de ataque onde o Luís já tinha dito um pouco isto, mas ainda bem que o escreveu para que tds tivessem oportunidade de ler!

    será que um conhecedor de futebol cm este não tem lugar em nenhuma equipa de futebol?e não me refiro cm técnico, mas quem sabe um director desportivo de que tt se fala hj em dia..
    enfim, como disse o Carlos Daniel no programa, perderia-se um grande comentador e nem por isso se ganharia outra coisa qq!!

    FORÇA PORTO!! e já agr FORÇA QUARESMA!!

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  5. Excelente texto ao nível do Luís Freitas Lobo, também gosto muito de ler os seus textos comparáveis às crónicas do Valdano que me fazem comprar "ABola" aos sábados.

    Como eu digo " Eu vi Zidane jogar" , também irei dizer que " vi Quaresma jogar", apesar deste "nosso pequeno desencontro" de que não mais quero falar, nem sequer pensar.

    Só que em comparação ao Zidane, tenho mais orgulho em ter visto Quaresma porque ele jogou pela equipa que sofro, vestiu e honrou aquela camisola que tantas alegrias me deu e irá me dar,é só por isso merece todo meu apreço e admiração, assim como todos os outros que representaram o FCP.

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  6. Totalmente de acordo.
    Luis Freitas Lobo no seu melhor, como é, aliás, costume!

    Agora uma nota: O sportinguista Carlos Xistra e o benfiquista João Ferreira foram nomeados pelo "chefe" Vitor Pereira (também ele sportinguista assumido)para os jogos do SportingxFCPORTO e V.Guimarãesxslb!!!
    Comentários para quê?... se fosse um ártbitro-portista é que eram elas...
    Assim, apenas e só votos de boas arbitragens, é o que desejo e espero. A ver vamos...

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  7. Assim é que é falar.

    marinheiroaguadoce a navegar

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  8. Era Inacio, treinador do Vitoria, e num Vitoria-slb, um dterminado 4º arbitro que só por acaso irá dirigir a partida de Guimarães, deu instruções ao arbitro de jogo, que não me recordo o nome, de expulsão de um jogador do Vitoria, depois de ter visto as imagens num monitor do operador de camara que estava junto a si. Foi uma inovação na história do futebol mundial. Engraçado que nunca mais se falou nesse caso. Alguém se lembra?

    O xistra irá terminar a encomenda feita antes do jogo com o slb, não tenham duvidas! Será desta que mostrará o amarelo a Quaresma? Ou será a dobrar?

    Quanto ao militar? Bem...

    Se é internacional porque é que a UEFA nunca o nomeia para jogos internacionais? ALguém me consegue explicar?

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  9. eu já tinha lido este texto fabulosamente bem escrito pelo Luís na A BOLA.

    Está excelente, são estas pessoas que ainda dão ao futebol em Portugal qualidade para ele permanecer. LFL é a pessoa que melhor fala, escreve e explica sobre futebol.

    PS: não exagerem. duvido que o quaresma com 43 anos ainda jogue XD

    idade actual - 24
    daqui a 20 anos.....24 + 20 XDDD


    Abraço. Continuem com o blog que cada vez se distingue mais na blogosfera pela sua qualidade indiscutível.

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  10. Acho que LFL é um comentador excelente, porque consegue ser independente...Tem uma linguagem poética mas que se torna muitas vezes interessante...Isento....
    Comparações com Zidane ainda é muito cedo...

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  11. Meus caros amigos, penso que nos estamos a exceder em considerandos quanto a esta questão -do Quaresma- que para mim ficou arrumada com a tomada de posição do Clube...A questão dos assobios é muito longa, vem de muito longe, recordo os tempos em que Oliveira era assobiado pelas inúmeras noitadas em que era apanhado por simpatizantes do Clube. Depois em campo tudo se esquecia...Do ainda mais longínquo Hernâni, acusado de tentar desestabilizar o balneário e querer assim mandar no Clube...E que saudades sentem agora dele, os que o viram jogar e assobiaram! Esta não é uma questão nova e se nos lembrar-mos de igual tratamento dado a treinadores então a crónica não iria terminar facilmente! Esta foi empolada porque havia vontade -bem identificada- em criar um clima de instabilidade para beneficiar a quem?...Sejamos inteligentes. O Quaresma embarcou nesse esquema porque como já disse, tem tanto de bom jogador como de criança! Muitos dos que são sócios do Porto, se-lo-ao por razões semelhantes a tantos que o são do Boavista, Leixões ou Braga?...Já disse que ultimamente raramente vou ao Estádio, mas quando fazia disso questão de honra, aborrecia-me ver tanta parvoíce entre os adeptos presentes, que por vezes considerava ser de admitir estarem ali mais para descarregar as suas frustrações pessoais, do que verdadeiramente para verem Futebol...O jogador como profissional é que tem de estar preparado para suportar isso e não reagir a essas atitudes, não é assim que ele se prepara -ou deve preparar-se- quando vai jogar a um campo adversário?...Um abraço a todos!

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  12. Quaresma resolve jogos?
    SIM, resolve, sem dúvida.

    Mas acho que tanto o Lucho como Lisandro, sem serem tão geniais, resolvem mais!

    Prefiro o tipo de jogador como o Lisandro que me entusiama pelo empenho, pela garra, mas também pela inteligência e pela regularidade.

    Além disso não tem atitudes de puto mimado, independentemente de eu não pertencer á massa assobiativa.

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  13. oporto, o V. Guimarães-Benfica aludido foi dirigido por Duarte Gomes e de uma parcialidade atroz em favor do Benfica que ganhou 4-2.
    O jogador expulso do Vitória foi Romeu que lá no canto mais distante, longe da acção que se desenrolava a meio-campo, agrediu Simão.
    João Ferreira era 4º árbitro e foi visionar a repetição do lance na câmara colocada junto à cabina do árbitro, no enfiamento da linha divisória do campo.
    Inácio, treinador do Vitória, denunciou logo a situação no final do jogo.
    Romeu de facto deu uma cabeçada em Simão. Facto.
    João Ferreira andou como um tolinho á procura da forma de chamar a atenção de Duarte Gomes.
    Lembro-me de um lance inacreditável ainda em 11x11.
    Há um penálti flagrante, estava 1-2 no marcador, contra o Benfica: um jogador do Vitória carregado pelas costas a entrar na área.
    O vitoriano barafustou, o jogador do Benfica saiu a jogar da área e depois sofreu uma falta rigorosamente igual à que o árbitro antes não viu.
    Foi uma questão de 15 metros entre um lance e outro e talvez 10 ou 15 segundos.
    Foi aí que "marquei" Duarte Gomes e posteriormente confirmei como é péssimo árbitro.
    O João "Pode ser o João" Ferreira era, obviamente, o árbitro "indicado" para este jogo.
    Em Alvalade, seria entre Lucílio e o Xistra.
    O Xistra ascendeu agora a internacional e só a partir deste mês pode ser chamado a jogos de selecções com as insígnias da FIFA.
    Mas no recente Porto-Setúbal foi ignóbil a forma discriminatória como apitou o jogo em desfavor do FC Porto, foi a arbitragem mais deplorável pela forma como a conduziu, irritando toda a gente e eu em particular assobiei-o permanentemente. Foi uma vigarice de arbitragem que não teve estragos porque não houve lances polémicos.

    Quanto a Quaresma, e voltando ao assunto depois de não ter andado aqui a comentar, acho que se cai no exagero contrário ao dos assobios: exagera-se a qualidade e categoria do jogador e em pinceladas de autor atribuem-se desígnios e fantasias fora da realidade. As coisas devem caber nos limites do campo de jogo. Pelo menos enquanto não houve mesmo Zidanes e Maradonas, ou mesmo Cristiano Ronaldo.

    p.s. andei arredio estes dias e só agora vim espreitar o que se comentou por aqui. Não podia deixar de auxiliar o oporto, mas nem sabia até hoje quem eram os árbitros dos clássicos.

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