É, inquestionavelmente, humano: não há nenhum de nós que não admire, de uma forma mais ou
menos assumida, o sucesso imediato.
Aquele surto de luz repentina que transforma um mero mortal num ser superior. De um forma limpa, objectiva, directa: como a maçã que caiu na cabeça de Newton e o despertou para a gravidade. Quase um truque de magia: atenção, meus senhores, muita atenção – podem ver, nada nas mangas, nada nas mãos – e nisto ouve-se um pufff e sai uma pomba branca do interior de uma nuvem de fumo.
Sim, faz parte da nossa dimensão humana (e portanto limitada) admirar aquilo que nos é inacessível, como o sucesso imediato e indolor. Mais grave é quando alguns incautos incorrem no erro de o querer para si, de o julgarem, efectivamente, possível. Não é. O sucesso é fruto de um caminho duro, de muitos erros, de muita luta, de muita insegurança, de muito (e porque não?) medo.
Não surge do nada, não é inconsequente e, acima de tudo, nunca é repentino. A não ser quando é um sucesso vazio, feito de êxitos tão ocos quanto momentâneos. O verdadeiro sucesso dá trabalho: muito. E os que pensam que o podem atingir sem ele são de uma inocência tão comovente quanto ingénua. Na verdade, a culpa até nem é deles, mas daquilo em que os fazem acreditar. Das histórias de sucessos imediatos que lhes contam, e em que eles acreditam, sem conseguir ler nas entrelinhas o pano de fundo do trabalho. Deixem-me partir numa um breve incursão pela minha área para vos ilustrar as minhas palavras com um exemplo muito significativo.
Toda a gente já ouviu falar de Darwin, o autor daquela que é, na minha opinião, uma das mais belas teorias formuladas no âmbito das ciências biológicas. Grosso modo, também toda a gente conhece a história dele: embarcou num barco como naturalista, chegou às Galápagos, maravilhou-se com a diversidade dos tentilhões e das tartarugas gigantes num espaço tão pequeno e... pufff: tal qual maçã que lhe caiu sobre a cabeça, ali mesmo lhe surgiu a teoria da selecção natural. Ou assim reza a lenda, assim é contada a história.
A realidade é um pouco diferente. Darwin era, na verdadeira acepção da palavra, um falhado: incapaz de concluir o curso de medicina (na altura, julgava-se que a nata da sociedade eram os médicos, sendo que aqueles que não conseguiam ou não queriam sê-lo eram considerados seres inferiores... ainda bem que a sociedade evoluiu nesse aspecto), o pai empregou-o a bordo do Beagle como naturalista, provavelmente para se ver livre do traste durante 5 anos.
Quando entrou no barco Darwin era, assumidamente, um criacionista (que, por oposição aos evolucionistas, acreditava que todas as formas de vida eram imutáveis e haviam sido postas na terra tal qual se encontram na actualidade por uma entidade superior). A sua tarefa era fazer um diário de bordo em que descrevia todas as espécies que lhe eram desconhecidas.
Fê-lo, ao longo de 5 anos. É verdade que parou nas Galápagos, é verdade que apanhou alguns tentilhões (eram tão bonitos... e precisava de amostras para o diário) e é verdade que apanhou algumas tartarugas gigantes (sopa de tartaruga, naquela altura, era um pitéu para os marinheiros).
Quase 5 anos depois, quando desembarcou em Inglaterra, Darwin era, assumidamente, um criacionista. Foi preciso muito tempo, muita dedicação e muitas pestanas queimadas para juntar as peças do que tinha visto e formular a teoria da selecção natural. Não, temos pena mas não foi um rasgo de inteligência momentâneo, não lhe surgiu de repente enquanto caminhava pela ilha: surgiu-lhe aos poucos, debruçado na secretária, de olhar fixo nos seus inúmeros apontamentos.
O Postiga. Eu gosto dele, palavra que gosto. Admiro o seu porte quando entra em campo, o jeito levezinho de pegar na bola
, a maneira felina e silenciosa como avança no terreno, a decisão na hora de rematar. Sigo a sua carreira há já algum tempo, e reconheço-lhe capacidades fabulosas: daí que me irrite tanto a sua teimosia em pura e simplesmente não jogar bem à bola.
Convenhamos: já não há paciência para o ver marcar um golo bonito e ficar o resto do jogo sentado na grande área adversária com o polegar esquerdo enfiado na boca à espera que passe a repetição do golo no ecran gigante. Quem me conhece há já algum tempo, e está habituado a ouvir as minhas opiniões, comenta: “mas tu admiravas tanto o rapaz...”. E admiro. Continuo a admirar. Mas não lhe consigo perdoar esta súbita altivez, este excesso de desdém em campo que já vai durando desde o início do ano. Vejo-o jogar e interrogo-me. Não lhe falta técnica, know-how, capacidade física. Muito pelo contrário: quando ele está para aí virado, tem um toque de bola que delicia qualquer adepto da modalidade. Trata o esférico com um jeitinho carinhoso, quase como se lhe fizesse festas, é capaz de se fundir com ele, como se ele não fosse mais do que um prolongamento do seu corpo que ele domina na perfeição.
Já o vi correr 90 minutos e rematar aos 91 como se tivesse acabado de entrar em campo. Se existe alguma entidade superior que abençoa uns seres com capacidades acrescidas em determinadas áreas, Postiga foi um dos sortudos iluminados. E no entanto... não chega.
Repito: não lhe falta técnica. Faltar-lhe-à, então, dedicação e capacidade de trabalho. E isso dá cabo de mim: aquele jeito mole de se passear pelo campo como quem já cumpriu a sua missão, aquele passar ao lado do jogo como se não fosse nada com ele... dá-me vontade de saltar para o meio do campo, agarrá-lo pelos colarinhos e gritar-lhe: “usa a enorme capacidade que tens!”.
Não obstante o meu mau-feitio, só há duas coisas neste mundo que eu não consigo de todo suportar: uma é o grão-de-bico; outra é ver um enorme talento ser desperdiçado por falta de dedicação e trabalho. Lembro-me sempre da admiração humanamente inata pelo sucesso imediato, o eterno confiar que a capacidade basta e o resto vem por si.
Lembro-me sempre da história de Darwin. Se eu não gostasse tanto do Postiga, se não admirasse tanto aquilo que ele teima em não querer mostrar, não me ralava nada. Assim ralo-me. E chateio-me. E irrito-me. É certo que é o melhor marcador da pré-temporada... da mesma forma que na época passada fez uma boa primeira volta. E desta vez, quanto tempo até ele se aconchegar no seu puf de estrela da bola e deixar os créditos por mãos alheias?
E então, ralada, chateada, irritada e acima de tudo cansada, é minha opinião que o Postiga deve sair do Porto, pelo menos um ano. Aprender a lição the hard way, já que parece que de outra forma não vai lá. (Outra maneira de ele aprender a lição era fecharem-no comigo numa sala durante 3 horas: um sermão bem trabalhado e duas ou três anestesias de contacto – vulgo estalos – bem aplicadas para vincar firmemente a minha posição, e o rapaz ia ao sítio. Não sendo possível, voto no empréstimo.)
Gostava muito de o ver voltar daqui a um ano, renovado e capaz de lutar pelo tal sucesso que não cai dos céus aos trambolhões. Gostava de o ver dar o melhor dele, em cada jogo, em cada minuto, independentemente de já ter marcado 7 golos e ter assistido outros tantos. Daqui a um ano. O rapaz precisa de arejar as ideias, precisa de morder a vida pelo lado errado e de sofrer o azedo. E depois, quando aprender que a luta constante é a única estrada que se pode percorrer, que volte. Fico à espera. Neste momento, olho para ele e vejo um enorme talento desperdiçado. E, não sei se já aqui o tinha dito, isso irrita-me como o caraças.
Curiosamente, no final da sua vida enquanto escrevia as suas memórias, Darwin quis acreditar ele próprio no seu sucesso imediato. Quis acreditar na história que contavam dele, quis esquecer anos de estudo e transmitir no seu livro essa versão relâmpago-de-inteligência. É. Todos admiramos o sucesso fácil, todos o queremos para nós. Mas ele não existe. Pura e simplesmente, não existe.
PS: quando lerem esta crónica, provavelmente já não estarei no Porto. Tal como o Zirtaev, parto para território hostil, onde espero repôr as baterias depois de um ano esgotante e festejar a conquista da Supertaça. Até ao meu regresso.