15 outubro 2009

O desafio




"A vida é como uma pedra de amolar: desgasta-nos ou afia-nos conforme o metal de que somos feitos"
(George Bernard Shaw, escritor irlandês)
As Autárquicas valeram por falar-se sobre a cidade. No rescaldo da votação, aqui trouxe temas à discussão no início da semana. Também por causa do FC Porto, derivado da animosidade institucional com a Câmara; com este presidente reeleito. Mas falta falar muito mais, até porque muito foi omitido na campanha. Deliberadamente, do ponto de vista político pelo tema incómodo que deve ser o Porto aos olhos de Lisboa. A responsabilidade é de todos? Alguns acham que votar chega. Mas voltou o anacronismo e a deslocação do fenómeno "Miguel de Vasconcellos", faltando deitar abaixo da varanda o comodismo atávico e o preconceito já enraizado de ter vergonha de ser do Porto, com ou sem sotaque.

E vem a propósito porque, aceitando o repto de Rui Moreira, estive ontem na apresentação do seu livro de reflexão sobre o Porto e ele tomou conta disso. Não se fala, no livro, do FC Porto, mas contam-se episódios envolvendo-o. Mas se o clube está bem mesmo que "de costas viradas" para a Câmara, é indissociável o clube da cidade, porque dela recebe o nome e divulga-o no mundo como marca de eleição. E se a cidade não está bem, não ajuda o clube a ser ainda melhor. Se é permitido diminuir politicamente a cidade, e esta se agacha e se cala pelo papel redutor a que a confinam desde Lisboa, se há abusos quando se referem, de fora, a esta cidade, eles são acatados como um "raspanete": atenção, vocês têm uma dimensão, são importantes para o País mas não deixam de ser, como tudo o resto, "fora de Lisboa". Ainda que, depois, venham uns caramelos adoçar(-nos) a boca, passar a mão pelo pêlo, é não erguendo vozes contra o rebaixamento e o esvaziamento que querem fazer do Porto que remete à evidência como a sua importância é continuamente diminuída, na central de propaganda em Lisboa engrossada, ironicamente, com tanta gente do Porto que vai para lá sem esquecer as origens, mas alheando-se dos problemas que deixaram para trás e se haviam comprometido a lutar pela sua resolução.

Ainda só o folheei, com umas leituras mínimas de raspão e uma atenção cuidada nas fotografias de cada capítulo. O índice, logo no início, detalha sucintamente o objecto de cada título; além da foto da autoria do próprio autor e, por isso, muito mais valorizada além do que eu presumi relevar do bom gosto que emergia da selecção de imagens identificativas da cidade. Não vou, por isso, discorrer sobre ele, mas Rui Moreira discutiu com a audiência alguns temas genéricos, mas pouco sobre as razões da sua "não inscrição", diria José Gil, ou não afirmação.

Agora, amolem-se!

E como cada capítulo se inicia com uma citação, para enquadrar o contexto seguinte, também lembrei uma citação daquele que mais parece um humorista britânico e que gozou por ousar pensar duas a três vezes por dia, em contraponto à maioria que pensa o mesmo só num ano. E Shaw sabia ser muito conhecido por pensar assim, dizendo verdades a brincar. De resto, mais do que a frase de Churchill sobre o bem da "Democracia ser, longe de perfeito, o menos mau de todos os sistemas políticos", Shaw aprofundou o tema: "A Democracia é o sistema de nos garantirmos ser governados como merecemos", com "a troca de alguns corruptos por muitos incompetentes". Como irlandês espirituoso, e corrosivo para com a Inglaterra da qual a República se libertou em 1922, ironizava ainda: "Os ingleses nunca hão de ser escravos: eles são livres de fazer tudo o que o Governo e a opinião pública lhes permitem fazer".

E se temos mais PS e Sócrates reeleitos é porque o merecemos. Idem para o Porto de Rui Rio. Num caso e noutro, agora aguentem-se e, infelizmente, aguentemo-nos, que não contribuí para isto e terminei a tolerância para com a charneira do poder.

Das coisas distintivas, históricas e sociais próprias, do Porto emerge e foi abordado o clamor da Regionalização como veículo político de descentralização administrativa e financeira intrínseca em muitos países e tão receada em Lisboa. Rui Moreira enumera factos, casos, datas e nomes, políticos ora bem, para justificar o impasse em que vive o Porto e a forma, consentida a bem da Nação e subsumida (perdoem o jargão filosófico) com a Revolução de Abril, como ficou enredado. Pelo sistema. Por Lisboa. Por políticos. Por gente também do Porto.

Quando, na plateia, alguém nega enfrentar a realidade de que, com as elites intelectuais também apascentadas pelos aparelhómetros partidários, com os políticos eleitos nos distritos mas sujeitos na AR a "pensar nacional e não regional", resta o povo descomprometido sublevar-se além de editar livros bem intencionados e exaltadores do carácter local e palestras que façam bem ao ego.

Com o PS a governar o País e a simular que deseja implementar a regionalização e o PSD mandante na cidade com os bem-pensantes líderes nacionais opondo-se à Regionalização, a clivagem é óbvia. Rui Moreira, seu acérrimo defensor, já não acredita que se faça. Porque o que impede o avanço é... o sistema. Se os políticos locais não reclamam por isso e os representantes daqui na AR se submetem à disciplina partidária, o ir contra o sistema é recusar qualquer partido destes. Mas alguém na sala acha que basta ir votar, supostamente no "mais do mesmo", para cumprirmos a nossa obrigação. Temo que nem o voto em branco, admitido como "protestatário" por Rui Moreira, nem para isso serve mal o novo Governo, mesmo contra uma eventual maioria silenciosa, tome posse. O facto de 45% de portuenses não terem votado não melhora o argumento pelo voto se este vai no sentido de sempre.

Para mim o povo portuense não age, reage. E não reclama, tem vergonha e diz só baixinho. Ou se ergue a voz, grita uma vez ciente de que o vento leva a palavra e não há eco nem nas escarpas da zona histórica onde ainda se ouve o fado... de Lisboa. O portuense não se posiciona no que é vital para a cidade. Aquele que fica consciente de que votar chega, gosta de ser apascentado como um rebanho?! Ora, no rescaldo das Autárquicas verificou-se, para alívio dos bem-pensantes lisbonenses que ditam a "moda" para o país que os escutam acriticamente como parece ser outra submissão moderna no Porto, o facto de o cartão partidário ser independente do cartão de sócio do FC Porto. É mais do que um exemplo para o País que só mostra desconfiança para com o Porto: a votação, reeditada, em Rui Rio não deixa dúvidas, com a desfaçatez irónica de uma maioria absoluta na AM contrariar o maior número de votos dos seus opositores em urna.

19 capítulos de exaltação e dor, como o jejum do FC Porto

Pode ter sido por acaso que Rui Moreira escreveu/espremeu 19 capítulos de "sumo portuense", os anos do jejum portista de títulos nacionais do FC Porto até 1978. Não lho perguntei, como não era próprio criar-lhe a alternativa na presidência da Câmara em vez da liderança no Dragão,sem receio da "promiscuidade" apenas detectada neste município e em nenhum outro do País.

É isso: o portuense assumiu, interiorizou, que não deve, como antigamente, erguer a voz contra quem o oprime e açaima. A "moda" - "a epidemia induzida" (ainda segundo GB Shaw) - o discurso está normalizado, estendido a todos os comentaristas e analistas e há quem se envergonhe de ir contra a maré. O Porto é também, como sempre, muitas individualidades, cada um senhor do seu nariz mas já não um todo homogéneo que fazia a cidade sempre senhora de si. Podia perder "bairrismo" ou sotaque, mas não a identidade e o antipoder que limite a ambição de Lisboa, desmedida e irresponsavelmente consequente. Mas o ir votar deu em modorra e deu nisto. Como Carlos Abreu Amorim é citado, "o Porto nunca quis dominar nada que não seja a si próprio. Essa é a sua força e a razão de muita da suafraqueza".


Por isso, não são aleatórias as citações que marcam cada capítulo, variadas e valiosas. E marcam mesmo. Desde o tema abrangente da paixão pela cidade de Sofia de Mello Breyner: "O Porto para mim é o lugar onde começam todas as maravilhas e todas as angústias". E "O Porto é o barco que nunca partiu" (Eduardo Lourenço), aquela sensação de inacabado sonho de conquista. Ou lembrando o grande Eça "... quando se soube que o Porto dava esta grande festa, Lisboa teve um estremecimentto de cólera, teve a tradicional, a costumada inveja", antes da aculturação pelo sistema dominante como se Lisboa exportando "Morangos com açúcar" fosse Hollywood. Resta saber, desse "irredutível gaulês" que (ainda) é Belmiro de Azevedo, já um baluarte empreendedor e teimosamente localizado do Porto, se a cidade vai cumprir o desígnio de "ter uma ambição sem limites", olhando a sua "regeneração adiada" (capítulo). É que, em Lisboa, Vasco Graça Moura apercebe-se que "a cidade está a morrer de morte macaca"...

Discurso novo, sem eco por falta de agressividade natural de quem é determinado?

Mesmo terminando com a necessidade de "Um discurso novo" (capítulo), Rui Moreira pode pôr a descoberto as estratégias centralizadoras de Cavaco e Guterres quando choveram milhões na capital na década de 90 de reforço do seu pequeno poder imperial; lembrar as promessas não cumpridas e expor os protagonistas portuenses transformados em lisbonenses homens de "noção de Estado"; contar factos que distorceram o País saído do pesadelo da ditadura a sonhar-se igual por todo; até céptico quanto ao alcance destas mensagens, na gaveta das campanhas eleitorais; mesmo realista, sem ser alarmista, face ao cenário negro e sem descurar uma sublevação geral quando tudo isto se agravar a Norte.

Haverá locomotiva para tirar o Norte da crise mais agravada que no resto do País, e que não transporte ideais de independência amiúde aflorados na blogosfera cuja importância Rui Moreira destacou face aos média tradicionais, como fórum de debate e escape, fora dos OCS estabelecidos e do discurso politicamente correcto a cujo formato se tem horror de destoar?

Há só reflexão. Cada qual tire a conclusão, Rui Moreira quis chamar ao livro "um sonho incumprido". Resta saber se ainda haverá carácter. Para, como preconiza Shaw, sabermos, afinal de que massa somos feitos.

Editora Civilização, 14,90 euros.






4 comentários:

  1. É uma triteza admiti-lo,mas o Porto apresenta todos os sintomas de estar acabado. A acção predadora de Lisboa constitui o princípio do nosso descalabro,mas não é a causa determinante. O mal está nos próprios portuenses,que se deixam espoliar sem um assomo de revolta,antes exibem a passividade fatalista do gado levado para o matadouro. E para demonstrar que a situação vai de mal a pior,chegamos ao absurdo de serem as nossa instituições a entregarem-se ao inimigo,numa espécie de suicídio colectivo.Resta-nos o FCPorto,o último bastião da nossa satisfação orgulhosa.Por quanto tempo mais?
    Acho que hoje estou particularmente pessimista,mas a verdade é que o caso da AEP foi uma "marretada" de que ainda não me recompuz.
    Cumprimentos e bom fim de semana.

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  2. "A acção predadora de Lisboa constitui o princípio do nosso descalabro,mas não é a causa determinante.

    Rui Farinas,
    o tal "mal está nos portuenses" foi pela acção sedutora a seguir aà predadora e os parolos atraídos pelas luzes de Lisboa.

    A capitulação económica, contudo, não será o pior, penso eu. Dramático é a falta de ideias e de lideranças.

    Ninguém reparou que os novos movimentos de cidadania, candidatos até a eleições, surrgiram todos em Lisboa?

    É sintomático. Com tudo o que implica e se demonstra por si mesmo.

    Resta, de facto, o FC Porto. E Belmiro, vá lá, faça-se homenagem a quem ousa resistir.

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  3. Os portuenses andam desmoralizados, deprimidos e desorientados com a sua Cidade.
    Falta, há muito, alguém com boas ideias e capacidade de liderança para arrastar a população para uma " revolta " cívica que nos coloque de novo no mapa e nos livre dos instalados subservientes, colaboracionistas e traidores que por cá polulam faz tempo.
    Deviam existir mais Helder Pachecos, por exemplo,o Rui Moreira até que podia ser uma dessas figuras aglutinadoras de um renovado entusiasmo pois se nada se fizer no sentido de abanar a consciência das pessoas, iremos ser arrastados definitivamente para o abismo e para a capitulação.
    Seria bom promover nas associações da Cidade debates e realizações várias, bem publicitadas e motivadoras, de forma a criar-se uma vaga de fundo que crie entusiasmo e consciência.

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  4. Os portuenses andam desmoralizados, deprimidos e desorientados com a sua Cidade.
    Falta, há muito, alguém com boas ideias e capacidade de liderança para arrastar a população para uma " revolta " cívica que nos coloque de novo no mapa e nos livre dos instalados subservientes, colaboracionistas e traidores que por cá polulam faz tempo.
    Deviam existir mais Helder Pachecos, por exemplo,o Rui Moreira até que podia ser uma dessas figuras aglutinadoras de um renovado entusiasmo pois se nada se fizer no sentido de abanar a consciência das pessoas, iremos ser arrastados definitivamente para o abismo e para a capitulação.
    Seria bom promover nas associações da Cidade debates e realizações várias, bem publicitadas e motivadoras, de forma a criar-se uma vaga de fundo que crie entusiasmo e consciência.

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