Ter de recorrer a Kant para apagar as virtudes do "século das luzes" não lembraria ao Diabo, mas o Dragoscópio conseguiu a mistela necessária para o vómito que faltava. Notável exercício de reflexão política-social, não recomendado a mentes republicanas mais sensíveis.
«Para não se confundir a constituição republicana com a democrática (como costuma acontecer) é preciso observar-se o seguinte. As formas de um Estado (civitas) podem classificar-se segundo a diferença das pessoas que possuem o supremo poder do Estado, ou segundo o modo de governar o povo, seja quem for o seu governante; a primeira chama-se efectivamente a forma da soberania (forma imperii) e só há três formas possíveis, a saber, a soberania é possuída por um só, ou por alguns que entre si se religam, ou por todos conjuntamente formando a sociedade civil (respectivamente autocracia, aristocracia e democracia; poder do príncipe, da nobreza e do povo). A segunda é a forma de governo (forma regiminis) e refere-se ao modo, baseado na constituição (no acto de vontade geral pela qual a massa se torna um povo), como o Estado faz uso da plenitude do seu poder; neste sentido, a constituição é ou republicana ou despótica. O republicanismo é o princípio político da separação do poder executivo (governo) do legislativo; o despotismo é o princípio da execução/ arbitrária pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, por conseguinte, a vontade pública é manejada pelo governante como sua vontade privada. - Das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda um poder executivo em que todos decidem sobre e, em todo o caso, também contra um (que, por conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto, todos, sem no entanto serem todos, decidem - o que é uma contradição da vontade geral consigo mesmo e com a liberdade.»
«Para não se confundir a constituição republicana com a democrática (como costuma acontecer) é preciso observar-se o seguinte. As formas de um Estado (civitas) podem classificar-se segundo a diferença das pessoas que possuem o supremo poder do Estado, ou segundo o modo de governar o povo, seja quem for o seu governante; a primeira chama-se efectivamente a forma da soberania (forma imperii) e só há três formas possíveis, a saber, a soberania é possuída por um só, ou por alguns que entre si se religam, ou por todos conjuntamente formando a sociedade civil (respectivamente autocracia, aristocracia e democracia; poder do príncipe, da nobreza e do povo). A segunda é a forma de governo (forma regiminis) e refere-se ao modo, baseado na constituição (no acto de vontade geral pela qual a massa se torna um povo), como o Estado faz uso da plenitude do seu poder; neste sentido, a constituição é ou republicana ou despótica. O republicanismo é o princípio político da separação do poder executivo (governo) do legislativo; o despotismo é o princípio da execução/ arbitrária pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, por conseguinte, a vontade pública é manejada pelo governante como sua vontade privada. - Das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda um poder executivo em que todos decidem sobre e, em todo o caso, também contra um (que, por conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto, todos, sem no entanto serem todos, decidem - o que é uma contradição da vontade geral consigo mesmo e com a liberdade.»
Questãozinha capital: O que é que nós temos tido, aqui em Portugal (mas no resto do mundo ocidental não será muito diferente), senão um despotismo a prazo, no decurso do qual tiranetes quadrianuais produzem e executam as leis e as políticas que muito bem lhes dá na real gana, sem que a vontade geral (que é suposto estar, segundo os principios iluministas, corporizada numa constituição) seja tida nem achada? Que raio de "estado de Direito" é este onde a separação entre o poder executivo e o legislativo (do judicial nem falo), pura e simplesmente, não existe? Ao primeiro-ministro, obedece o governo e obedece o Parlamento - o tipo escolhe ministros, escolhe deputados e ainda escolhe não sei quantos funcionários de nomeação, entre os quais juízes e procuradores-gerais. Na verdade, uma minoria da população elege-o a ele; depois ele elege quem muito bem entende e lhe apetece. Se tivermos em conta a qualidade dos primeiros-ministros nestes últimos quarenta anos, especialmente da última meia-dúzia, caramba, há algum espanto que o resultado seja a ruína, o descrédito, a desonra, a desagregação moral, social e nacional? E nem é preciso recorrer aos meus princípios (assaz diversos, diga-se), basta convocar os mais elementares princípios iluministas, os tais imaculados e altamente bondoso e progressistas de que toda esta corja se arvora procuradora, curadora e delegada de propaganda médica assistida!... Em bom verdade, servem-lhes de ornamento à retórica e de papel higiénico à prática.
Mais, o velho Kant é ainda mais incriminador quando, num texto de 1783, define o Iluminismo como « a saída do homem da sua menoridade de que ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de se servir do entendimento sem a orientação de outrem. (...) A preguiça e a cobardia são as causas por que os homens em tão grande parte, após a natureza os ter há muito libertado do controlo alheio , continuem, no entanto, de boa vontade, menores durante toda a vida; e também por que a outros se torna tão fácil assumirem-se como seus tutores. É tão cómodo ser menor.»
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