Evocar o campeonato de 1977-78, apesar de se lhe ter seguido o episódio do árbitro da finalíssima da Taça que foi de viagem com o Sporting à China…
Já aqui tinha evocado a conquista da Taça de Portugal pelo FC Porto em 1977. Seguiu-se-lhe dois títulos de campeão nacional, apesar de não ter conseguido revalidar o triunfo no Jamor pelo celebérrimo Mário Luís que de escalabitano passou a “chinês”: em dia de final do Mundial em Buenos Aires, com a garra argentina a superar a qualidade laranja em movimento, houve a finalíssima de 25 de Junho de 1978 (1-2, depois de 1-1 uma semana antes com o sadino, irradiado pela UEFA em 1973, Francisco Lobo a apitar), ter seguido viagem com o fato oficial do Sporting numa digressão à China. Eram tempos em que a democracia fervilhante em Portugal cheirava a pólvora, entre a ameaça pavorosa da guerra civil abortada a 25 de Novembro de 1975 e os atentados das FP-25 até ao início dos anos 80.
Tempos de grandes memórias, quando tudo se sentia à flor da pele e os resquícios do regime perpassavam no futebol. Um tempo em que, ganhos dois títulos para o Porto a juntar à Taça de 1977 após as conquistas do Boavista de 75 e 76 com Pedroto ao leme antes de voltar às Antas, a democracia demorou a aceitar uma nova ordem no futebol – uma reviravolta porventura mais espectacular da que o próprio país viveu, este com subsídios de Bruxelas para betão e ironicamente mais centralismo asfixiante que hoje é mais abominável e intolerável; e o futebol com resistência interna feroz que na actualidade passa por golpes baixos de ética para inverter o curso da História.
A hegemonia portista actual é esmagadora como também aqui se evocou e suplantava, há 30 anos, os mais bisonhos sonhos do mais indefectível adepto.
Mano-a-mano
O FC Porto ganhou o título de 1977-78, o primeiro desde 1958-59, sim aquele em que Calabote, antes como hoje, bem tentou tudo para manter as águias no poleiro. E que título, 19 anos depois, com que luta, frente a uma rotina bafienta instalada desde os anos 60, quando a regra eram 3 campeonatos do Benfica e 1 do Sporting, durante uns 15 anos, maquinalmente, ciclicamente, quando não se duvidava do cavalheirismo dos dirigentes de então e a falta de competitividade do campeonato não era motivo de discussão alguma. Discussão passou a existir quando a agulha mudou para Norte e se alvitraram mil e uma maneiras de questionar o sucesso de emblemas fora da capital.
O quadro ao lado resume o mano-a-mano do FC Porto com o Benfica que era tricampeão pela 4ª vez consecutiva, com o Sporting a intervalar mas sem deixar de se enjoar com o mesmo cenário de sempre. Talvez por isso, o êxito do FC Porto, cavalgado pelo dinamismo e liberalismo nortenhos a impulsionar a economia, foi aceite de bom grado, uma lufada de ar fresco na competitividade nacional. Mas o futebol era a imagem do que estava para mudar no país, antes ainda de haver auto-estradas (só nos anos 80 a A1 fez Porto-Lisboa) que, no futebol do mais alto escalão, só em 2006 chegou (A42) a Paços de Ferreira para, ironicamente, agora lhe meterem portagens…
Os episódios marcantes tenho-os de memória, dessa época inolvidável, mas a ajuda documental, de tanta ânsia de preservá-la, escapou-se-me no formato de uma revista “Golo” então dedicada ao título portista com todas as fichas de jogos e em vão a procurei nos últimos meses.
O FC Porto foi líder isolado apenas em 7 jornadas, contra as 12 em que o Benfica, com uma defesa de ferro que garantiria a imbatibilidade na prova, comandou sozinho. Mas a diferença pontual entre ambos nunca superou os dois pontos, então equivalentes a uma vitória. Ficou famosa a época do Benfica por nunca perder nas 30 jornadas, mas o FC Porto também só sofreu o que passou a ser uma costumeira derrota em anos de título, à 2ª jornada e no sempre problemático campo do Estoril onde no ano seguinte foi despachado da Taça com 3-0…
A regularidade do Benfica parecia impor-se, graças a 6 golos sofridos nas 20 primeiras jornadas, apesar de não se exprimir em grandes resultados nem sequer em séries de vitórias que costumam desmoralizar a concorrência: só numa ocasião fez 4 triunfos seguidos. Esteve 5 jogos sem marcar e a sua pior série foi de 2 empates em 3 jogos.
Defesa melhorada, ataque arrasador
O FC Porto marcou quase 3 golos por jogo no campeonato e, por uma vez, o ataque resolveu aquilo que em épocas anteriores não bastara: desde 1973-74, o ataque produzia, mas a defesa costumava ceder até ao dobro dos golos consentidos pelo Benfica… Pois foi a sul que se pescaram grandes jogadores, de Freitas do Belenenses para compor a dupla de centrais com Simões da Académica, de Murça na lateral-esquerda também procedente do Restelo a Octávio e Duda no meio-campo oriundos do Bonfim. O capitão Rodolfo era e foi sempre um homem da casa, Oliveira idem, Seninho também apesar da incorporação militar que o levou a Angola, Gomes estreou-se na I Divisão em 1974 com dois golos à CUF na 1ª jornada e acabaria em 1978 como melhor marcador com 25 tentos (e 27 no título seguinte).
Os 81 golos do campeão só tiveram freio em 6 jogos sem marcar. Mais de metade (48) da produção atacante garantiu 13 vitórias consecutivas que se seguiram ao moralizador empate na Luz. O FC Porto passou de dois pontos atrasado para dois pontos adiantado nessas 13 jornadas, com vitórias importantíssimas em Braga e no Bonfim na viragem do campeonato e a espectacular derrota do Sporting sempre atrás no marcador (0-1, 1-1, 1-2, 2-2, 2-3) até Duda marcar de tiraço rasteiro, a 30 metros, junto a um poste tornando infrutífera a estirada de Botelho.
Antes, porém, o FC Porto teve de fazer dois jogos no Estádio do Mar, por interdição das Antas, no dérbi com o Boavista a ver fugir o Benfica e numa série de três empates em quatro jornadas que podiam comprometer a caminhada para o título.
Memorável capacidade atacante teria de se coroar com a liderança na recepção ao Belenenses. À 22ª jornada, os azuis tinham Jorge Martins na baliza e chegaram às Antas com apenas 9 golos sofridos: 8 nas primeiras 10 jornadas e um em Espinho nas 11 partidas seguintes. Aos 15’, Pedroto tirou Gabriel da lateral-direita e meteu Seninho. O Belenenses, soterrado com 8-0 na época anterior nas Antas e que nos quatro anos seguintes levou sempre de três para cima, foi arrasado com 6-0 e acabaria com os mesmos 21 tentos sofridos pelos portistas e só com 25 golos marcados, o bastante para o 5º lugar. Perdera apenas uma vez por mais de um golo (1-3 em Alvalade, 10ª jornada).
Empatado na Póvoa onde o Benfica tinha o que ao Porto correspondia a visita ao malfadado Estoril, o tricampeão empatou em casa com o Portimonense e depois cedeu também outro 0-0 com o Sp. Braga. Para aproveitar este deslize benfiquista, o FC Porto tinha de vencer no Bessa, onde era costume jogar ao sábado, a condizer com o estádio que, apesar de muita chapa na cobertura e rede de galinheiro à volta do relvado, granjeava a fama de britanizado.
Cada Boavista-Porto valia a pena. O ambiente era fantástico, ao contrário dos dérbis nas Antas, sem público contrário nem adversário de luta. Tudo amontoado nas bancadas, estas pouco altas e sem grandes condições de visibilidade. O túnel para os balneários era atrás da baliza sul. Os adeptos boavisteiros ocupavam apenas a bancada central. Existia o peão, sem degraus, cujo muro permitia a melhor visão, para quem nele se empoleirasse.
O Boavista-Porto com a Taça de Inglaterra
O problema é que naquele sábado, como era hábito de Maio, havia a final da Taça de Inglaterra na televisão. À parte as finais europeias, era dos raros jogos estrangeiros disponíveis na RTP e nenhum passível de se perder. O Ipswich, de Bobby Robson, foi o ‘underdog’ desse ano face ao Arsenal que cumpria a primeira das suas três finais consecutivas. Perdeu esta, o Arsenal, por 0-1, como perderia a terceira (com o West Ham), mas muito renitente lá estive eu no Bessa sem saber como os azuis do futuro técnico do FC Porto bateram os londrinos com o golo de Osborne. Um Ipswich de futebol ofensivo, 3º em 1975, 77 e 79, 2º em 1980 e 81 ano em que venceu a Taça UEFA e cuja carreira levou Bobby Robson em 1984 à selecção inglesa e 10 anos depois ao FC Porto via Alvalade.
Gomes fez no Bessa, pelo quarto-de-hora, o golo costumeiro, desvio subtil de cabeça num cruzamento da direita (talvez um canto). Oliveira faria o 2-0 na 2ª parte, dominando a bola com a coxa direita, sobre a meia esquerda, no bico da área, para rematar um canhoto cruzado rasteiro, indefensável para Matos, um golo à inglesa, de uma beleza plástica invulgar mas própria da sua genialidade. Timóteo, no JN, teve o instante fotográfico da bola a bater no poste mais distante para tabelar e entrar, uma foto de 1ª página que guardei até a má impressão da altura, quando os jornais saíam a quente dos caracteres de chumbo, fazer amarelecer o que na memória jamais se apagou.
Com dois pontos de vantagem a cinco jornadas do fim, ainda para receber o Benfica, ir às Antas era igual fosse o Espinho ou o Sporting: sempre enchente. A 28 de Maio, com jogo às 5 da tarde, sob um sol abrasador, a visita do Benfica não podia começar da pior maneira. Na época anterior, um Benfica superdefensivo ganhou 1-0 com golo de estreia de Chalana, do seu formidável canhoto do bico da área direita, bola em arco sobre Joaquim Torres aos 11’. O FC Porto massacrou o resto do tempo mas perdeu. Taí, o lateral-esquerdo, prometia ao intervalo deixar de jogar se com tal avalancha ofensiva o FC Porto não vencesse. Faltava sempre um bocadinho… assim…
Simões acabara de marcar na própria baliza, uma bola morta, mal dominada com a coxa esquerda a um cruzamento da direita para ninguém: 3’. O melhor ataque do campeonato superaria a melhor defesa? Fosse pelo sol tórrido de fim de tarde, pela defesa de ferro comandada por Humberto a secar Gomes, por um dia não do FC Porto que nem obrigou Fidalgo a muito trabalho, era preciso um milagre e aconteceram dois.
De repente, vindo do nada, espraiando-se no campo como a espreguiçar-se, o Benfica meteu uma bola na área portista onde só apareceu Humberto. Estou atrás da baliza sul, o silêncio impera, o mundo irá acabar? Humberto chuta, centrado, da marca de penálti, Fonseca atira-se à toa, a bola bate-lhe num pé e ressalta para a barra. Rodolfo deu-lhe a extrema unção, talvez se tenha até trocado de bola que terá saído do estádio, tal o alívio de a ver longe, não houve recarga e os 12 minutos para o fim do jogo foram como recomeçar o campeonato. Um livre de Ademir devolvido pela barreira mereceu uma recarga para golo, aos 83’, que ficou como um dos mais marcantes golos da história do FC Porto. Tivesse entrado a bola de Humberto, não tivesse marcado Ademir na recarga a que teve direito, a história dos 30 anos seguintes do FC Porto poderia ter sido bem diferente.
Ainda dava para perder um ponto em Coimbra, onde a Académica passou a designar-se no masculino com a criação do Académico, Organismo Autónomo do Futebol (OAF). Freitas estourou uma bola na barra, do meio do campo, Costa destacava-se nos estudantes e explodiria no ano seguinte com a camisola do FC Porto no bicampeonato. O FC Porto chegou à última jornada, a 11 de Junho de 1978, com os mesmos pontos do Benfica e uma diferença de golos muito favorável.
Mais um jogo às 17 horas, ida para o estádio às 13, comida na bancada que às 15 já ninguém cabia nas duas filas de gente, tanta gente, em cada degrau. O Braga que um ano antes viu consagrar o FC Porto vencedor da Taça, viria assistir ao coroar de um novo campeonato e o relançar de uma nova história dos campeões nacionais. Nelinho, tricampeão pelo Benfica, teve uma queda na área pelos 10’ que nunca se soube se foi provocada ou simulada. Mas o FC Porto actuou com a força de um campeão e somou 4 golos anos 81 da época, contra 56 do Benfica que só sofreu 11.
O regime caduco
O Sporting ficou a 9 pontos, perdera à 4ª (Setúbal) e 6ª (Antas) jornadas para não mais dar luta. O Guimarães resistiu com os primeiros até à 10ª jornada, cedendo em Setúbal também.
Foi a época de estreia do Marítimo na I Divisão, o futebol chegava às ilhas da mesma forma que virou a norte.
O Braga acabou em 4º e qualificou-se pela 1ª vez para a Taça UEFA. Havia subido em 75-76, quando o Boavista acabou em 2º na I Divisão e tinha duas Taças no bolso, frequentava a Europa da bola.
Até Riopele e Feirense, em 77-78, marcaram presença, mas desceram e para os primeiros, dos arredores de Guimarães e da fábrica têxtil do mesmo nome, foi a única vez na alta-roda.
A democracia e o impulso económico a norte mudaram a face da I Divisão. Do equilíbrio no número de clubes, passou-se à hegemonia nortenha. A fisionomia do país alterou-se e via-se no futebol: Atlético e Montijo desceram na época anterior (76-77) e nunca mais se viram. Antes (75-76) acontecera à CUF, tal como a U. Tomar. Olhanense e Oriental despediram-se em 74-75. A cintura lisboeta perderia ainda o Estoril, apesar de ganhar o E. Amadora.
Portugal mudou muito e não se imaginaria em que extensão. O futebol marcou golos na via da democratização. O FC Porto fez valer o seu peso em ouro para ir mais longe onde o Boavista já chegara via Taça de Portugal.
Santos populares
Para a história ficaram os heróis portistas que passaram a santos populares – e como eu vi Gomes e Oliveira, dependurados em camionetas cheias de adeptos anónimos, festejarem na Baixa, no meio do povo portista com o mesmo sentimento de alma arreigado.
Os jogadores campeões foram: Murça, Oliveira, Fonseca, Duda (30 jogos); Seninho, Simões, Rodolfo (28); Gabriel (26), Gomes (25), Ademir (24), Octávio (22), Celso (16), Adelino Teixeira, Vital (12), Paço Gonzalez (5), Taí (2), Jairo, Manuel Teixeira “Teixeirinha” e Rui guarda-redes (1).
Percebe-se que a equipa não mudava muito: Fonseca; Gabriel, Freitas, Simões, Murça; Rodolfo; Octávio (Ademir), Duda; Seninho, Oliveira e Gomes.
E os 81 golos: Gomes (25), Oliveira (19), Duda (12), Ademir (11), Seninho (5), Octávio (4), Murça e Vital (2 cada) e Gabriel (1).
Europa, Europa
Enquanto o FC Porto se afirmava em Portugal, a Europa começou a ouvir falar do clube azul-e-branco. O triunfo da Taça da época anterior levou a equipa de Pedroto aos quartos-de-final da Taça das Taças ao longo de 1977-78. Eliminado o Colónia que seria bicampeão alemão, com 2-2 (golos improváveis de Gabriel e Octávio) e 1-0 em Coimbra (golo também improvável de Murça), o FC Porto afastou o Manchester United com 4-0 (3 golos de Oliveira e 1 de Duda) e 2-5 numa 2ª mão do maior sofrimento admissível num jogo de futebol; depois o Anderlecht verdugo, que recuperaria (4-0 ao Áustria de Viena) o troféu ganho em 1976 (West Ham) e perdido em 1977 (para o Hamburgo): 1-0 nas Antas (Gomes), num jogo repetido 24 horas depois devido à chuva que só deixou jogar meia parte na quarta-feira uefeira, e 0-3 em Bruxelas.
A Taça dos Campeões de 1978-79 começaria com 1-6 em Atenas com o AEK e 4-1 na missão impossível das Antas. Na época seguinte, já caiu o Milan com o famoso (mais um tiraço) golo de Duda a 45 metros de Albertosi em S. Siro. E o Real Madrid não tombou (2-1 e 0-1) porque após o bis de Gomes o golo traiçoeiro de Cunningham, sem Vautrot deixar completar a barreira portista no livre, deixou que um golo solitário em Chamartin, após falhanço clamoroso de Gomes isolado, decidisse a eliminatória pelo golo marcado fora pelo negro inglês que foi das contratações mais famosas à época.
p.s. – estive vários dias longe destas lides, para as quais deixei alguns textos, de escrita apressada, que o Zirtaev “editou” e que mereceram apelos de amigos da bancada de que só agora dei conta, mas a que não posso responder tão tardiamente. As atribulações uefeiras fizeram-me, de resto, adiar esta evocação do título de há 30 anos que então vivi com a mesma emoção com que agora encarei, mais serenamente e confiante desta vez, esta luta ganha ao Benfica que teve de ser dirimida na secretaria e confirma o statu quo da instituição falida em credibilidade moral quando já lhe feneceram as forças para uma competitividade que há três décadas não supunha sofrer, muito menos com humilhações constantes que só recrudescem o seu desespero.
E como o S. João era costume falar-se ser antecipado pelos títulos do FC Porto, como foi em 1978, e agora já estão tão desfasados no tempo como a certeza matemática do título de 2008 ter sido em 5 de Abril (a 2 meses e meio de distância, meu Deus!), o post/filme, delicioso, do Zirtaev sobre o S. João só reconforta o meu esforço em trazer agora o que muitos não conheceram mas bastantes serão capazes de lembrar nos comentários que lhes aprouver.